segunda-feira, 2 de novembro de 2020

FINADOS, nº 7 - VEM, DOCE MORTE (Henriqueta Lisboa)

Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores — secreto —
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso — mais alto — refloresça.

Caspar David Friedrich (German, 1774-1840), Kügelgen's Tomb (1821-22).

- Henriqueta Lisboa, in "Poesia geral", 1985.

Nenhum comentário:

Postar um comentário